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A escassez como potência em 5 curtas vicentinos

  • Foto do escritor: Leandro Olimpio
    Leandro Olimpio
  • 4 de abr.
  • 5 min de leitura

Durante o mês de fevereiro de 2025 conduzi um curso, em São Vicente, com recursos da Lei Paulo Gustavo. O objetivo era compartilhar um pouco do que aprendi e pratiquei na minha curta caminhada como documentarista. Desta oficina, surgiram cinco curtas. Sobre eles, faço alguns comentários no texto abaixo.



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Muitas vezes, filmes dos outros “fazem parte de nós e dizem mais sobre nós do que nós mesmos diríamos”. Chris Marker disse isso e também indicou como se é fisgado por um filme. Pra ele, “a poesia que cada um traz consigo é capaz de neutralizar as armadilhas da técnica”. Os cinco filmes que compõem a Mostra Contra-Arquivo de Cinema, com o tema 5x São Vicente, confirmam o que ele diz. Realizados por alunos do curso que ministrei, “Documentário com imagens de arquivo: práticas e reflexões”, os curtas da Mostra se afastam das águas calmas do cinema documental caiçara.


Há alguns anos acompanhando festivais de cinema da região, observo a insistência por um cinema que gasta mais energia no conteúdo do que na forma, que hierarquiza a palavra sobre a imagem, que se preocupa mais com a técnica do que com a poesia. Muitas vezes, parece mais jornalismo do que cinema. Robert Drew definiu bem esse tipo de documentário: “palestras ilustradas com imagens”.


Estamos todos aqui, curta de 2017 rodado no Guarujá, é uma das raras e exemplares exceções. No canal do youtube onde está disponível, a legenda diz: “filme loco da favela da prainha”. É isso. Loco no conteúdo, na forma, na experiência que nos oferece.


Porém, diante de uma causa relevante, sinto que a maioria segue cedendo à tentação de se apoiar na justeza do que se exibe, secundarizando a linguagem cinematográfica. Mas como escreveu Fernando Solanas:

A verdadeira arte seduz e sugere. Em outras palavras, revela e expressa em vez de explicar, alcançando assim sua máxima expressão

Em “Escudo”, por exemplo, não há nada para elucidar nem convencer. A velocidade com que surgem na tela diferentes manchetes de jornais não é casual. Diante da tragédia fascista que violenta a comunidade periférica, seria ingênuo pensar que as pessoas não sabem o que se passa ali. A questão não é essa, é outra: quem é capaz de sentir? Trata-se de um filme que não espera que o espectador o entenda, mas o sinta.


Aliás, talvez seja importante contextualizar o modo de produção dos filmes desta mostra. Tratavam-se, oficialmente, de meros exercícios. No dia 11 de fevereiro, terceiro dia de aula, a turma composta por 25 pessoas se dividiu em cinco grupos. Pouco mais de um mês depois, no dia 16 de março, os curtas foram finalizados.


Todos foram feitos a partir de materiais de arquivo, rapinados de diferentes acervos físicos e digitais. Imagens precárias, de baixa qualidade, esquecidas. Em nenhum deles, foi preciso set de filmagem, câmera 6k, Ordem do Dia. Em todos, se desenharam dinâmicas de criação semelhantes à de Agnes Varda. Questionada certa vez sobre qual seu método, ela respondeu: “zig-zag mental”. Em alguns, nem mesmo programas de edição sofisticados foram usados.


Nos filmes “São Vicente: uma ponte para…” e “Ipupiara: ecos de um passado esquecido”, as montagens foram feitas num aplicativo de celular. Afinal, montar um filme depende mais de uma operação intelectual sensível do que de um software profissional.


Não foi a tecnologia que facilitou em “Ipupiara” uma montagem delicada, que precisa de “pouco” para construir o seu discurso. O filme entende que, diante de um poder público cínico, que pensa executar seus crimes sem rastros, não há muito o que se dizer. É preciso mostrar. E a melhor resposta é botar as provas do crime na mesa, com ironia e deboche.


E não foi a tecnologia que permitiu, em “São Vicente: uma ponte para…”, uma montagem semelhante à nossa memória: lacunar, parcial. A voz over, apaixonada pela prosa descompromissada da mesa de bar, se desenvolve sem nenhum compromisso com a linearidade. Contra a história oficial, supostamente coerente, as reminiscências de uma família negra.


Em “Os grandes não cabem aqui”, a voz que nos conduz abre mão do didatismo e da pretensa objetividade para compartilhar um olhar pessoal, e ao mesmo tempo coletivo, das dores vividas no transporte público. Com poesia, elimina as sobras, o excesso. Parece simples, mas não é. Como disse Rosa Colfied, heroína de Willian Faulkner, "há coisas em que três palavras são três palavras a mais, e três mil palavras, três mil palavras que não chegam". Cada palavra neste filme importa.


Na realidade, não há um único filme que reivindique para si a tarefa, às vezes ingênua e arrogante, de nos explicar o que exibe, de não deixar dúvidas sobre o que diz. Ao contrário, os curtas dão ao espectador o direito de interpretar aquilo que vê. Os ingredientes estão ali, mas não espere uma receita pronta.


O curta “Nosso corre” talvez seja o melhor exemplo desta saudável recusa à totalidade. As colagens visuais e sonoras, que se espalham pelo filme, são suficientes para expressar o caráter coletivo desse corre; e a montagem, que avança ofegante e sem tempo a perder como o seu personagem, nos lembra que as reflexões e digressões do precariado são assim: fragmentadas, apressadas, interrompidas.


Mas essa recusa à totalidade não se confunde com uma recusa a se posicionar diante do que é injusto e opressivo. Santiago Alvarez já havia dito, anos atrás, que:

O cinema não é somente questão de estilo ou fórmula expressiva, é também um problema ideológico

E os filmes que compõem essa mostra não carregariam tanta potência se tivessem renunciado a um olhar crítico e humanista diante do mundo.


Tais filmes, aliás, sequer existiriam se tivessem tremido diante do terrorismo jurídico que envolve o direito às imagens, músicas e sons que circulam pelo mundo. Se inspirando nas práticas do cinema cubano de subversão da escassez, estamos falando de uma “poética da apropriação total, onde não se paga direitos autorais por nada, pois tudo pertence à humanidade”. O que, por óbvio, não significa o direito de se apropriar do que quiser, como quiser. Aqui, não se questiona o que é legal usar, mas sim se é ético e moral, sempre sob um ponto de vista de classe.


Pra quem gosta de Eduardo Coutinho, o maior documentarista que esse país já produziu, podemos dizer que os filmes da Mostra Contra-Arquivo de Cinema dialogam com aquilo que ele sempre buscou fazer: “tentar entender o país, o povo, a história, a vida e a mim mesmo, mas sempre fixado no concreto, no microcosmo”.


Como disse um amigo, cinema é coisa séria, mas também brincadeira. Ou, dito de outro modo, das coisas menos importantes na vida, o cinema é das mais importantes. E esses filmes, que nasceram como exercícios, apontam caminhos possíveis para um cinema caiçara disposto a mergulhar no mar aberto e agitado de um cinema que se permite ousar e arriscar. Como vimos, não é preciso muito.

 
 
 

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2 comentários


Thais Fernandes
Thais Fernandes
06 de abr.

Que texto lindo! :)

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Leandro Olimpio
Leandro Olimpio
08 de abr.
Respondendo a

Obrigado por ler e pela mensagem, Thais =)

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